2003-07-24

Reforma da Administração Pública IV

Os funcionários públicos são acusados de, entre outras coisas, não terem incentivo porque independentemente de fazerem muito ou pouco, melhor ou menos bem, são promovidos ao fim de três anos.
Não é bem assim. Mas é verdade é que o salário dos funcionários depende do seu posicionamento na carreira e este, em regra, evolui segundo dois factores: 1. Progressão, que é automática e implica a subida ao escalão seguinte da categoria, em regra, cada três anos e, 2. Promoção, que depende de concurso para o qual se exige, também em regra, a permanência durante três anos na categoria.
Este sistema tornou-se, com o decurso do tempo (todas as práticas tendem para a degradação) injusto. Injusto porque (a) da progressão se pode dizer, efectivamente, que é automática e, (b) porque as promoções tendem a depender, essencialmente, de um factor inteiramente alheio ao funcionário e é a existência ou não de verba orçamental que permita a abertura do concurso. É que, havendo dinheiro há, em regra, lugar para todos. Não havendo dinheiro, não há lugar para ninguém. Cada funcionário de um serviço sem dinheiro conhece bem aquele colega que – esperto – se transferiu para um serviço onde o trabalho é pouco e há sempre dinheiro e, passados meses, já fez concurso e já está na categoria seguinte inteiramente a latere do tempo de serviço, do mérito relativo e da quantidade e da qualidade do trabalho de cada um.

Ora, este é um problema relativamente fácil de resolver, assim os reformadores da Função Pública sejam capazes de pensar e de ouvir os que pensam sobre estes assuntos.

Deixando por agora as progressões, basta que os serviços – todos - tenham orçamentos realistas para fazer face às suas despesas de pessoal e sejam adoptadas, relativamente aos concursos, duas medidas simples de implementar: (i) que se abram concursos, para todas as categorias, todos os anos e, (ii) que cada concurso seja aberto para um número de vagas que não exceda a metade dos funcionários com mais de três anos na categoria. Tal obrigaria os júris a escolher. É fundamental que os júris sejam obrigados a escolher, coisa que hoje não podem fazer, ainda que o quisessem, quando são mais os lugares que os concorrentes.

2003-07-16

habeas corpus

O habeas corpus não passou.
Previsível!
O objectivo é, aliás, ou muito me engano, chegar aos tribunais europeus.
Absolutamente de acordo.
Se eu for preso amanhã quero saber exactamente porquê.

2003-07-08

A medalha

Ouvi na televisão que a Sr.ª Secretária de Estado da Administração Pública disse que o mérito dos funcionários será compensado com reconhecimento, mas não com dinheiro.
Se foi isto que disse mais valia, com o devido respeito, estar calada. As suas afirmações podem pôr em causa toda a reforma, designadamente na vertente, fundamental, da sua compreensão e aceitação pelos destinatários.
Não é assim que as empresas compensam o mérito.
Não vale falar de adopção das regras da gestão privada e, desde logo, afastar a aplicabilidade de uma das suas características fundamentais que é a distinção salarial de acordo com a importância do trabalhador para a organização.

Avaliação

É difícil não estar de acordo com os propósitos de reforma da administração pública anunciados pelo Governo.
Eu próprio, tenho defendido, em conversas nas mais diversas situações, designadamente com outros funcionários e dirigentes, soluções que me parecem perfeitamente compatíveis com as linhas orientadoras que foram publicadas.
Mas há que não ser simplista. Na imensa floresta de enganos que é a Administração Pública há que distinguir entre as diversas árvores, arbustos e simples ervinhas. Há que distinguir entre administração pública e função pública, há que distinguir as diversas realidades que cabem sob o chavão “administração pública” e mais uma enorme quantidade de coisas obviamente distintas.
Pode-se e deve-se falar de tudo mas, de preferência, não ao mesmo tempo.
Avaliação, por exemplo:
A esmagadora maioria dos funcionários sabe que a classificação de serviço não funciona e todos a querem mudar, porque todos se sentem e são, efectivamente, prejudicados por ela.
Mas não creio que se possam avaliar funcionários sem avaliar dirigentes, ou que se possam avaliar dirigentes sem avaliar serviços.
Avaliações por entidades internas e externas, incluindo por entidades estrangeiras? Tudo bem, os funcionários estão calmos e serenos, até porque sabem bem que não vai haver nenhuma consultora estrangeira que conclua que o mau funcionamento do seu serviço é culpa do contínuo A ou do assistente administrativo B.
O que a consultora irá concluir é que a missão do serviço está mal definida, que as suas competências são difusas ou conflituantes com as de um outro, que os meios materiais, financeiros e humanos estão desajustados, seja por excesso seja por defeito, que não foram implementados planos de formação ou de carreiras, etc. etc.
Os funcionários estão tão abertos à mudança que aceitarão que se comece, apesar de tudo, pela avaliação do desempenho. Isto porque uma das coisas que mais os desgosta é a rasoira que faz de todos iguais.

2003-07-05

Fátima

O Tito José Augusto Sampaio Gomes, não o vejo há mais de trinta anos, quando ambos éramos furriéis milicianos no quartel-General do CTIG, em Bissau, mas quem é que se ia esquecer de um nome assim? Melhor, acho o encontrei há, talvez, uns dois anos, na esquina do Rossio com a Betesga. Trocámos palavras. Desculpe. Não o conheço? Acho que não. Pois. Acho que não. Desculpe. Boa-tarde. Íamos longe quando liguei circunstância e personagem. O Tito era alto, loiro, petulante, monárquico com um bigode retorcido nas pontas a condizer, vocalista de um grupo Rock do Porto, a Lanterna Mágica, de cuja existência nunca tive outra confirmação. O Tito tinha um sonho que, com frequentemente, expressava em voz alta, nas noites longas de calor e humidade em que o tempo se arrastava pegajoso pelo clube de sargentos: Ver um concerto dos Rolling Stones na esplanada da Cova da Iria.
Agora Fátima é concelho.
O primeiro da família a peregrinar foi o meu avô Joaquim Coelho Quitério, um dos que, em Outubro de 19717, viu o sol bailar. O meu avô viu coisas extraordinárias, uma fábrica de óleo de baleia (ou era de cachalote?) em Tróia, o Gungunhana cativo, a caminho do exílio em Angra do Heroísmo.
Mais de quarenta anos depois, por duas ou três vezes, segui os mesmos caminhos. Saíamos da Ataíja, meia-noite cerrada, um pequeno rancho, a minha avó Maria Lourenço, a ti’Maria da Graça, uma dúzia ou menos, comandado pela ti’Maria Rosalía, a passada cadenciada, ritmo marcado pela ladainha do terço rezado em voz alta e pelo treino da guia, obtido nas longas andanças, em passo miúdo, entre a Ataíja e o Cadoiço e os Casais de Santa Teresa e do Rei, aplicando as injecções prescritas pelo médico da longínqua Alcobaça. Que a ti’Maria Rosalía, além de católica devota, irmã do Sagrado Coração, de freiras e de emigrantes, cultivava as terras da herança familiar e era a única pessoa que, nas redondezas, sabia dar injecções. Lembro-me dela com uma caixinha onde transportava a seringa e as agulhas que desinfectava pelo fogo numa bola de algodão alcoolizado. Íamos por Casais de Santa Teresa, Casal do Boieiro, Pedreiras, Tourões, Corredoura onde naquele tempo havia um endireita, Porto de Mós e montes acima até ao Alqueidão da Serra onde se acabavam os caminhos, substituídos por veredas de terra polida pelos pés, a maioria descalços e um vaivém de burros sem cabresto, serpenteando no ladear das rochas emergentes de onde hoje nasce a calçada à portuguesa e até São Mamede, os Vinte da feira de gado, com chegada marcada ao recinto do Santuário lá pelas dez horas da manhã que, a partir daí, o sol de Agosto queima. À noite, estendida ali mesmo a manta, comia-se a bucha e os mais velhos descansavam, dormitando ou fingindo, enquanto os mais novos sussurravam conversas de circunstância ou preliminares de namoro que a jornada a todos oferecia um tempo longo e raro e por isso precioso. No dia treze, mal terminada a procissão do Adeus, era tempo de tomar o caminho do regresso, mais quase trinta quilômetros, que hoje se faz de carro e merece, que a paisagem lá está, até ao horizonte quando se começa a descer do Alqueidão, à espera de olhos que a saibam ver (há, também, uma estrada romana, mas disso talvez falemos noutra altura).
Com a percentagem de residentes de Fátima que são membros da Igreja e dependente que a economia do concelho está da Igreja, vai ser muito curioso ver como é que a Igreja se relaciona com o poder político local. O resto, a discussão à volta da criação do concelho, com os mesmos protagonistas e os mesmos argumentos de sempre, essa está prestes a ser esquecida.